segunda-feira, 10 de maio de 2010

post 2

Ao sair da estrada, peguei uma avenida larga. A neblina descansava sobre as ruas iluminadas. Nenhuma placa de boas-vindas. Fui dirigindo devagar, estava morto de sono e mal se podia ver um palmo à frente. Quer dizer que essa cidade de merda tem um fog londrino – ri comigo mesmo. Estava num bairrozinho classe-média, todo arborizado. Charmoso. Pelo menos era o que eu conseguia enxergar. O limpador de pára-brisa travava luta inglória contra os pingos de chuva fina. Avistei um supermercado 24h. Seria uma boa idéia dar uma encostada até a neblina desaparecer. Se alguém perguntasse alguma coisa, diria que estava esperando minha mulher chegar com as compras. “Ela gosta de fazer compras durante a madrugada, assim não pega fila no caixa , ela odeia filas. Minha patroa é muito temperamental”. Já tinha resolvido não me hospedar em nenhuma porra de Hotel. Queria evitar ter que mostrar minha identidade falsa. Isso me deixava um pouco nervoso. Não gosto de perder o controle das coisas. Devo agir como um cirurgião. Resolver o problema em um dia e cair fora, era só isso o que passava pela minha cabeça.


Não vi nenhum sinal de carros passando, àquela hora a rua estava deserta. Tomei um susto quando virei pra entrar no estacionamento do supermercado. Um cachorro preto enorme atravessou a pista e freei bruscamente. Tive a impressão de que o animal me fitou por alguns segundos antes de desaparecer na neblina. No estacionamento só havia meu Maverick e uma camionete toda enlameada. Melhor assim. Tomara mesmo que esta seja apenas uma cidade fantasma abandonada no meio do nada. Facilitaria meu trabalho.


Reclinei o banco e joguei o cobertor velho que sempre trago comigo em cima de minha carcaça cansada. Liguei o rádio. Tava rolando um programa local. Rádio Lucero Del Alba. Puta que pariu! Será que esse era o nome da cidade? Será que eu estava em Lucero Del Alba! Mudei de estação e deixei rolar.



Um vento frio lambia o vidro do Maverick, fazendo um zunido esquisito. Tomei mais um comprimido, até que adormeci.


Ela pegou minha mão e me levou através da grama molhada. Gosto do cheiro de grama molhada me faz lembrar os tempos de quando era criança. Chegamos até um pequeno chalé. A neblina se dissipava enquanto o sol dava a cara para bater numa manhã de outono. Antes de abrir a porta, ela fez menção para que eu abaixasse e falou ao pé de meu ouvido: “Bienvenido al Infierno, hombre”. Uma voz rouca e pequena. “O quê?” – indaguei. “Bem vindo a Hell City, querido”. Sorriu lasciva. Devia ter uns 15 anos no máximo. O vestido branco sacudia ao sabor do último resquício de sereno. Uns raiozinhos de sol chegavam tímidos emoldurando a sua pele alva coberta de sardas. O cabelo ruivo ficara ainda mais luminoso. Seus lábios grandes pronunciaram algumas palavras que não pude distinguir. Sentei-me numa poltrona. Ela apareceu novamente ostentando um arranjo de jasmim no cabelo. Ela ajoelhou-se na minha frente, confortável e relaxada num tapete cor de vinho. As mãos delicadas pousadas na altura do joelho. Acendeu uma bagana de maconha e fixou os olhos verdes nos meus. Seus olhos sinceros pareciam com um oceano profundo e turbulento. Uma das alças do vestido escorregou pelo ombro revelando uma parte do seio. O mamilo róseo se enroscou na seda da malha. Deu dois pegas e dirigiu-se a mim apontando a janela:


- Vão foder com você em Podzemni. Arrancarão seu coração em Koshukei e por fim vão pendurá-lo enforcado em Cmentarz.

- O quê?

- Sim, queridinho. Vão foder com você em Podzemni. Arrancarão seu coração em Koshukei e por fim vão pendurá-lo enforcado em Cmentarz.

- Quem é você? Como se chama?

- Mé jméno je Marina Svatý”

- Como?

- Mi nombre es Marina Svatý.

- Eu... eu não consigo compreender..

- Marina Svatý, me chamo Marina Svatý. Seu porco.


Um filete de sangue escorreu de sua narina. Levantou-se em silêncio e saiu pela janela. Em seguida eu estava submergindo em águas revoltas. Afundando. Sem fôlego. Naufragando. Sem ar. Uma sensação familiar de queda. Um hipopótamo veio em minha direção. Toc, toc, toc.


Acordei em sobressalto. Alguém havia escrito na porta do Maverick “Bem vindo a Lucero Del Alba, forasteiro”. Cacete, fiquei meio atordoado observando os raiozinhos de sol derreter a água que a neblina tinha acumulado no vidro deformando a frase de boas vindas. Precisava de um cigarro e de um café quente.


(trilha sonora: “Threads” – Portishead)


post 1




NA TOCA DO COELHO DE ALICE


Sim era inevitável. Eu tinha plena consciência da merda em que estava prestes a me meter. Quanto mais cedo você souber disso, melhor. Assim que Martin desligou o telefone, eu saquei que entraria em alguma encrenca da grossa. Era inevitável. Quanto mais cedo você souber disso, melhor. Um problema a menos para ficar martelando na cabeça.


Martin era um canalha. Armou direitinho pra mim, sabia que eu não podia negar. Precisava da grana, mas a idéia de aparecer por lá simplesmente me amedrontava. Então eu decidi que deveria agir como um cirurgião. Peguei tudo o que precisava e joguei no porta-malas do Maverick. Dei uns tiros antes de sair.


Coloquei a chave na ignição e fiquei me encarando por alguns segundos no espelho do retrovisor. Eu tinha plena consciência da merda em que estava prestes a me meter. Quanto mais cedo você souber disso, melhor. Não podia desistir. Era inevitável. Foda-se, faço o que tenho que fazer, pego a grana e dou o fora - pensei. Dei a partida e sabia que daquele momento em diante não teria volta. Tinha adquirido meu ticket só de ida para o inferno. Logo o Cão me apresentaria toda a sua coleção de seres bizarros. Tudo bem, eu tinha um soco-inglês e uma 9 mm.


Peguei a estrada velha rumo à Cidade Cinza às três da manhã. Uma luz estranha e azulada cobria o céu. A névoa envolvia as montanhas. Um cheiro de mato insistia em despertar minhas lembranças. As boas. Engraçado como o frio sempre me traz recordações. Fazia uma temperatura de 5 graus. Na metade do caminho precisei de uns comprimidos e uma dose de Jean Bean que levava no cantil dentro do bolso do meu casaco.


Quando o medo fez a mínima menção em tomar as rédeas do negócio eu trapaceei com ilusionismo tolo, auto-enganação. Aí busquei no recôndito de minha memória a textura daquela pele branquíssima, uma espécie de malha rara. Veludo com aroma de alecrim – orvalho do mar. Ela era magra e tinha uns traços tristes estilo atriz expressionista. Um ar meio deprê que sempre me chama atenção nas mulheres. Tinha olhos estranhos – gosto de garotas com olhos estranhos. Longos cabelos feito espirais negras soltas ao vento. Os ombros largos conferindo-lhe aquela postura elegante de bailarina. A camisa entreaberta revelando entranças para os seios pequenos e bem delineados, estrada para carros desgovernados. Sua voz frágil penetrando meus tímpanos e indo direto se instalar naquela região da espinha, nascedouro de calafrios.


A imagem evaporou feito um sonho quando o coyote atravessou a estrada. Freei bruscamente e bati de leve no guardirreio. Tive a impressão de que o animal me fitou por alguns segundos antes de desaparecer na mata. Deve ser o sono. Dei mais um tiro, engoli outro comprimido e virei duas doses de Jean Bean. Segui em frente com aquela sensação incômoda que se tem quando se acorda de um pesadelo. O dia estava prestes a amanhecer quando avistei do alto da colina as luzinhas da cidade lá embaixo. Os pássaros revoavam tagarelas. A lua começava a esconder sua cara. As estrelas retardatárias desapareciam nos confins da aurora.

A temperatura tinha caído mais ainda. Tremi por dentro. Não sei dizer bem o porquê, mas aquela cidade exalava veneno e óleo diesel. Uma cidade fora do mapa. Martin havia me orientado seguir uma estrada abandonada numa viela que começava dentro do segundo túnel. Uma estrada dentro de uma picada. A cidade perdida no fim do mundo. No meio do nada. A cidade dos bairros proibidos. “Bem vindo a Hell City, querido”, foi o que ouvi daquela voz rouca e pequena quando a vi pela primeira vez. Era inevitável. Eu definitivamente estava fodido.


(trilha sonora: “Paris, Texas” – Ry Cooder)