segunda-feira, 10 de maio de 2010

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NA TOCA DO COELHO DE ALICE


Sim era inevitável. Eu tinha plena consciência da merda em que estava prestes a me meter. Quanto mais cedo você souber disso, melhor. Assim que Martin desligou o telefone, eu saquei que entraria em alguma encrenca da grossa. Era inevitável. Quanto mais cedo você souber disso, melhor. Um problema a menos para ficar martelando na cabeça.


Martin era um canalha. Armou direitinho pra mim, sabia que eu não podia negar. Precisava da grana, mas a idéia de aparecer por lá simplesmente me amedrontava. Então eu decidi que deveria agir como um cirurgião. Peguei tudo o que precisava e joguei no porta-malas do Maverick. Dei uns tiros antes de sair.


Coloquei a chave na ignição e fiquei me encarando por alguns segundos no espelho do retrovisor. Eu tinha plena consciência da merda em que estava prestes a me meter. Quanto mais cedo você souber disso, melhor. Não podia desistir. Era inevitável. Foda-se, faço o que tenho que fazer, pego a grana e dou o fora - pensei. Dei a partida e sabia que daquele momento em diante não teria volta. Tinha adquirido meu ticket só de ida para o inferno. Logo o Cão me apresentaria toda a sua coleção de seres bizarros. Tudo bem, eu tinha um soco-inglês e uma 9 mm.


Peguei a estrada velha rumo à Cidade Cinza às três da manhã. Uma luz estranha e azulada cobria o céu. A névoa envolvia as montanhas. Um cheiro de mato insistia em despertar minhas lembranças. As boas. Engraçado como o frio sempre me traz recordações. Fazia uma temperatura de 5 graus. Na metade do caminho precisei de uns comprimidos e uma dose de Jean Bean que levava no cantil dentro do bolso do meu casaco.


Quando o medo fez a mínima menção em tomar as rédeas do negócio eu trapaceei com ilusionismo tolo, auto-enganação. Aí busquei no recôndito de minha memória a textura daquela pele branquíssima, uma espécie de malha rara. Veludo com aroma de alecrim – orvalho do mar. Ela era magra e tinha uns traços tristes estilo atriz expressionista. Um ar meio deprê que sempre me chama atenção nas mulheres. Tinha olhos estranhos – gosto de garotas com olhos estranhos. Longos cabelos feito espirais negras soltas ao vento. Os ombros largos conferindo-lhe aquela postura elegante de bailarina. A camisa entreaberta revelando entranças para os seios pequenos e bem delineados, estrada para carros desgovernados. Sua voz frágil penetrando meus tímpanos e indo direto se instalar naquela região da espinha, nascedouro de calafrios.


A imagem evaporou feito um sonho quando o coyote atravessou a estrada. Freei bruscamente e bati de leve no guardirreio. Tive a impressão de que o animal me fitou por alguns segundos antes de desaparecer na mata. Deve ser o sono. Dei mais um tiro, engoli outro comprimido e virei duas doses de Jean Bean. Segui em frente com aquela sensação incômoda que se tem quando se acorda de um pesadelo. O dia estava prestes a amanhecer quando avistei do alto da colina as luzinhas da cidade lá embaixo. Os pássaros revoavam tagarelas. A lua começava a esconder sua cara. As estrelas retardatárias desapareciam nos confins da aurora.

A temperatura tinha caído mais ainda. Tremi por dentro. Não sei dizer bem o porquê, mas aquela cidade exalava veneno e óleo diesel. Uma cidade fora do mapa. Martin havia me orientado seguir uma estrada abandonada numa viela que começava dentro do segundo túnel. Uma estrada dentro de uma picada. A cidade perdida no fim do mundo. No meio do nada. A cidade dos bairros proibidos. “Bem vindo a Hell City, querido”, foi o que ouvi daquela voz rouca e pequena quando a vi pela primeira vez. Era inevitável. Eu definitivamente estava fodido.


(trilha sonora: “Paris, Texas” – Ry Cooder)


Um comentário:

veronika b disse...

Zoe, querida. Obrigada pela leitura e pela correção de "ignição". Desculpe apagar seu comentário, é que quando fui corrigir deu pau e tive que postar novamente. Coisas que acontecem com quem escreve direto no computador!
Beijo,
Veronika B